Se apura compadre

Ouviu calado o cliente reclamar sobre os resultados da sua comunicação, respirou fundo e saiu. Chegando na agência, começou a escrever uma historinha bem conhecida e que ilustrava bem a situação, decidido a mandá-la para o cliente:

Um homem sonhou que a grande barragem tinha ruído e as águas barrentas da represa arrastavam tudo o que encontravam à sua frente. As plantações, o gado, as pessoas, as colheitadeiras, as casas, tudo era engolido pelo caldo liberto. Como se a água tivesse memória do tempo em que era rio. No sonho, ele assistia a destruição aproximar-se.
Possuído pelo medo, correu, foi quando Deus apareceu. Era velho e barbudo, exatamente como ele achava que Deus era. Então, o todo-poderoso falou: "pela minha vontade a cidade sucumbirá sob as àguas. Nada tema porém, meu bom homem, quando chegar a hora irei em teu socorro".

E não é que, passado uns dias, realmente a barragem estourou. Agora de verdade, a água foi levando tudo. O escolhido ficou na dele, fingindo surpresa, assistindo o povo fugir em pânico. Um compadre parou com um Toyota fumegando diesel em frente ao seu ranchinho e gritou:

- Se apura compadre, pula aí atrás que a água tá chegando!

Vou não compadre, respondeu nosso homem, trate você de se salvar que eu fico com Deus. Não tivesse a água já chegando, teria descido da pic kup e levado o compadre na marra, mas não tinha o que fazer, acelerou e pediu pela alma do insano.

Então a água chegou, aos poucos foi subindo, entrou pela porta, fez boiar a mesa e as cadeiras, o fogão deixou no fundo. Com toda calma, apesar da água pelo joelho, o eleito apanhou o crucifixo na parede e subiu no telhado.

Dali, podia testemunhar a dimensão da tragédia, ao redor passavam bujões de gás, arbustos e outras coisas boiantes. Foi então que avistou, remando uma canoa, um outro compadre seu. No barco estavam também, um cachorro e algumas galinhas. Ouviu o compadre gritar, enquando se aproximava rapidamente levado pela correnteza.

- Pula n'água compadre, que eu te apanho na passagem!

- Pulo não compadre, vai com Deus, inté.

Se pudesse insistiria, mas a correnteza era muita, só acenou com o chapéu, quando passou pela casinha, agora com a água quase no teto.

Ninguém passou mais, só água e sujeira, até que uma grande árvore enrroscou-se no telhado da casa, arrancada da terra pela força das águas. Ficou ali encalhada por alguns instantes, disponível, depois foi embora. A água então cresceu rapidamente cobriu o telhado. Enfureceu-se, levou o homem de roldão, afogou-o várias vezes, matou todas as suas vidas e o depositou nas margens do céu.

Ao acordar e ver os anjinhos, o eleito ficou muito chateado com a troça divina e pediu uma audiência com o Deus. O que mais ele podia fazer?

O céu havia passado por uma reengenharia que reduziu muito os níveis hierárquios, agora ao morrer, recebe-se uma senha e pronto, é tudo no auto-atendimento, uma beleza. Por isso, o magoado pode ser recebido sem muita burocracia.

Nosso amigo então contou sobre o sonho, ressaltando a promessa divina de poupá-lo da morte e, no entanto, agora estava mortinho da Silva na presença de Deus, que, diga-se, era mais jovem do que ele imaginava.

O Onipotente ouviu com calma, acariciou a barba e respondeu.

Pois é, meu bom homem, sinto muito por você, mas nem no velho velho testamento Eu seria capaz de uma pilhéria tão infame com um filho meu. Fiz o que julguei oportuno à circunstância. Mandei uma pickup, você recusou. Então providenciei uma canoa, você também recusou. Mesmo humilhado pelo seu desprezo, ainda pensei em você e enviei uma árvore para salvá-lo. E você, arrogantemente, mais uma vez, não aceitou.
Não fui eu, portanto, quem faltou com a palavra. Você é que não me reconheceu no justo, no simples e no adequado.

Fim.

Quando acabou de escrever, mudou de idéia, não mandaria a historinha para ninguém. Não é por aí, concluiu. Amanhã é outro dia. E além do mais, não sou Deus.

Outubro de 2001
Portfolio ...|... Revista ...|... Below ...|... Jornal ...|...Design...|... Contato ..|..Alltype..|