Quem não faz, toma

Mais um dia ganho, mais um leão morto. A chave do carro largada no lugar de sempre. Acha o controle remoto, nunca está no mesmo lugar, automaticamente aponta para a tela sem vida da TV, encontra um jornal num canal aberto, entram os comerciais. Assiste com a atenção e respeito que merecem os trabalhos dos seus coleguinhas. Entra o jornal.

Ao contrário da maioria, aproveita que acabou o intervalo e vai até a cozinha apanhar uma cerveja. "Pô que nível bom", reflete, surpreso. Abre a geladeira. "O horário nobre justificando o nome", conclui com uma certa inveja profissional. Fica ali parado inspecionando aquele espaço friorento. Namora a embalagem Tetra pak do leite, encara o hamburguer estampado no rótulo do catchup, despreza a beringela solitária, talvez porque não tenha nenhuma marca. O vidro de tomates secos, entretanto, prende sua atenção, seu rótulo é como um vestido elegante num corpo de linhas macias, nem precisa dizer que é importado, claro. "A gente tem que evoluir muito no ramo de embalagens", constada.

Toda essa distraída ação se passa enquanto seres humanos são baleados, sequestrados, afogados e soterrados na TV, entre escândalos locais, rusgas globais e misérias africanas. Ultimamente, quando assistia ao noticiário, essas brutalidades o tocavam cada vez menos, isso porém, o incomodava cada dia mais. "Poderia ser algum sutil sinal de envelhecimento?" perguntava-se, apesar dos 28 anos.

Cuba, Kennedy, Vietnan, 64, 68, Andraus, Joelma, Herzog, Afeganistão, Bateau Mouche, Chico Mendes, Malvinas, Golfo, Candelária, Bósnia. Separados por milhares de intervalos comerciais, tem sido assim por pelo menos metade do século. Isso de alguma forma aumentava a responsabilidade sobre o que colocar no ar entre uma tragédia estúpida e um genocídio insano. Era preciso ser ético acima da tudo, recusar o mal gosto e o vulgar, por mais que a vida se apresentasse dessa forma na TV. Acreditava, com essa postura, estar modestamente contribuindo para um mundo melhor. Se não pudesse ser assim faria outra coisa. O que?

Pousada não dá mais. Depois dos programas de demissões voluntárias adotados pelas empresas o mercado nessa área ficou inflacionado. Um bar? Essa idéia o perseguia faz tempo, abriria "o bar", aquele que todo mundo reclama que falta. Encheria a taça da noite entediada, ocuparia o vácuo da falta de assunto, colocaria uma gravata borboleta no colarinho do chopp, o mais bem tirado da cidade é claro. Já tinha tudo esquematizado, até o nome, que ele enxergava em neon quando o assunto entrava na sua imaginação, sem bater nem pedir licença.

Mas esse plano B estava por hora descartado, uma vez que sua carreia ia muito bem, seu trabalho se destacava, e justamente por conter uma sólida base ética. Tinha enfrentado alguns problemas no começo, é verdade, mas seus princípios haviam se mostrado eficientes em curto espaço de tempo. Resultado, propaganda é resultado, esse é o único vento capaz de conduzir uma carreira nessa área. O instinto artilheiro, a canhota fulminante, o uper-cut demolidor, o saque supersônico, tudo isso ele tinha. Afirmar que além disso tudo era humilde seria exagero, mas sua vaidade não passava dos limites tidos como razoáveis no mercado. E tinha motivo para isso, nunca havia inscrito em festivais nenhuma peça que não tivesse sido realmente produzida. Jamais havia chupado trabalhos de anuários. Em nenhum momento usou outra arma para competir a não ser o seu talento. Ainda assim vinha acumulando suas medalinhas.

Outro break - volta para a sala com a cerveja- não tão bom como o anterior mas ainda assim de nível.

De repente, depois de um comercial daqueles feitos em cima de pesquisa, a própria dramatizacão de um briefing, ele não acredida no que vê: sua idéia tal qual foi concebida num comercial de outra agência. Não, não pode ser. Mas era, aquela idéia que caiu no seu colo no chuveiro, que ele guardava, mocada, havia meses, não contava pra ninguém, nem escreveu com medo que fosse surrupiada, sabe lá. Escondia na cabeça, no compartimento dos desejos inconfessáveis. Todo dia dava uma lembradinha com medo de esquecê-la. Pois então, lá estava ela. Produzida tão bem como gostaria que fosse a sua, talvez até melhor. Só que não era sua, como não era? É, não era. "Mas eu pensei antes," justificou-se.

"O pior", refletiu, "é ter que ficar quieto, porque se falar que já tive essa idéia, ainda passo por mentiroso". "O importante é saber que é minha. Será?" A idéia lhe pertencia como um recorde, batido na solidão de um treino, que não pode ser homolologado. E apenas esse auto-reconhecimento não era suficiente para dar sossego ao ego. Além disso, não geraria propostas, nem traria prêmios, nem reajustes. Resulatdo, propaganda é resultado. É, teria que adiar a Cheroquee.

"Se tivesse falado para alguém teria pelo menos uma testemunha", lamentou-se
Ficou ali por uma pequena eternidade, triste, tomando sua cervejinha que já começava a esquentar, vendo o pessoal se matar na telinha cinqüentona, pensando no seu bar, já tinha até o nome. Mudou de canal, achou uma partida de futebol. Mal acabava de sintonizar sai um gol, feio por sinal. Entra o comentarista: "pois é amigo assinante: quem não faz, toma."
Amassa a lata da cerveja. O leão de amanhã não terá a menor chance.

Outuro de 2000
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