Marketing do oprimido

Já se foi o tempo em que a informação era exclusividade das elites ( Excetuando–se as financeiras, que serão para sempre ). Não consigo enxergar com precisão, por quais mecanismos são atingidos os menos afortunados. Talvez o complexo mix formado por: revistas velhas, televisões de vitrine, transmissões de rádio, cartazes de banca e painéis luminosos, componham um sistema de informação ainda mais eficiente do que supomos.
De qualquer maneira, as paredes tornaram-se mais permeáveis, deixando fluir para as ruas um conhecimento que, até pouco tempo, estava confinado sob os tetos.

Só para ilustrar: Uma amiga dirige-se ao seu carro, quando coloca a chave na porta é abordada por um homem, com aparência de mendigo, totalmente embriagado, que rapidamente dá início a estorção: "Aí, madame, tomei conta direitinho"... Mal consegindo articular as palavras. Para seu azar, a mulher não vinha de uma reunião muito produtiva, estava no inferno astral e acabara de desfiar a meia, explode: "Não vem não, você nem estava aqui quando eu estacionei, não vou te dar dinheiro nenhum. Isso é o fim". Surpreso com a violência da reação e mal conseguindo parar em pé, o incomodo senhor encerrou o assunto: "Hiii, madame, qualé? Tá issssstressada, tá? E ela estava mesmo. Embora balão, o infeliz não poderia ser mais preciso no seu diagnóstico.

E para sobreviver nos novos tempos, os desafortunados utilizam-se das mesmas ferramentas que um executivo com MBA. Houve uma época em que bastava uma formação nas ruas para garantir uma carreira de medicância razoavelmente confortável. Hoje, devido a forte presença de estacionamentos, a estagnação do número de pontos e, principalmente, ao aumento brutal da concorrência ; o fantasma do desemprego começa a assombrar o, até então, seguro mundo do sub mundo.

Não há o que se possa fazer, a globalização é irreverssível: só os mais preparados sobreviverão. A única certeza é a mudança.

Esses são os novos tempos: o sonho da esmola garantida transformado no pesadelo da falta de pontos. Clientes potenciais circulando inacessíveis em shopping centers. Sinaleiros disputados com promotoras de vendas, muito mais atraentes do que os pobres maltrapilhos. Existe ainda, um crescimento do número de carros com ar-condicionado, que andam sempre com os vidros fechados. Além disso, os clientes estão a cada dia mais assustados com sequestros relâmpago e violências do gênero. Antigos aproaches como: "uma moedinha pra interar a passagem", já não convencem ninguém. Nem a boa educação, que exige, o por favor; o Deus te abençoe - condição primária da formação de qualquer pedinte-, parece fazer diferença. A atuação porta a porta quase não existe mais nas grandes cidades, constituídas prioritariamente de prédios e condomínos. As casas que restam possuem mais cachorros que moradores, o que torna muito arriscado o exercício da profissão. E para terminar o quadro de crise, acontece que os clientes, eles mesmos empobrecidos, já não se comovem mais com a pobreza dos pobres. "Vai trabalhar vagabundo", dizem. Quando não dizem, pensam.
Mas ensina o marketing: onde há crise, existe oportunidade.

É preciso rejuvenescer a miséria como produto, agregar novos valores à ação de esmolar. As novas gerações já não assimilam mais naquele mendigo de porta de igreja, ultrapassado. O céu prometido também deixou de ser um diferencial na decisão de esmolar.
Escravas do trabalho, as pessoas não enchergam no pedinte um profissional como elas. Prisioneiros do medo, os clientes acreditam que todos nas ruas são perigosos. Dependentes do sabonete, têm aversão à sujeira. Por isso, está mais do que na hora de criar uma pobreza totalmente voltada para o mercado.

O seu posicionamento começa pelo resgate da sagrada dignidade de classe. Eleita pelos profetas como bem-aventurada e escolhida pelos homens santos de todas as crenças; o pobre tem que orgulhar-se da sua desprivilegiada condição. Da mesma forma o samaritano, nosso alvo prioritário, deve voltar a perceber a ação filantrópica como parte de um quadro mais nobre do ponto de vista espiritual, isso agrega valor ao seu ato. Não se trata mais de sustentar desocupados, mas sim de prover eleitos.

E assim fez Ezequiel. Embora jovem, Zequia, como é conhecido, graduou-se na rua, possui doutorado em sobrevivência e mestrado em adaptação. Um vencedor.
Com uma ampla visão de mercado, não limitou-se a fazer igual a todos os da rua. Inovou, acrescentou um caixote de engraxate que ele carrega, para dissimular. Aboliu o ultrapassado "Deus lhe pague", bem como as formas mais marotas de agradecimento, do tipo, "falô aí, mo irmão". Usa apenas o básico: "muito obrigado". Veste-se adequadamente para o cargo, não tenta comover ninguém usando fantasias. Dá-se ao luxo de trajar o casual, às sextas. Aborda os clientes sem rodeios ou histórias. Quando cuida de carro, não faz pressão, nem acha ruim se um ou outro não deixam nada. "As perdas estão dentro do previsível", faz as contas. De vício, tenta ficar só com a cola. Não quer se queimar junto aos clientes. As pessoas não gostam de ajudar quem tem vícios, acham que o dinheiro vai ser usado para mantê-los. "É justo", compreende. Pensando estratégicamente procura fidelizar os clientes, através de um complexo programa de marketing de relacionamento, que envolve desde cordiais cumprimentos, até pequenos favores, como ajudar a descarregar um porta malas, segurar um guarda chuva e coisas assim, sem humilhação. Esse programa já lhe rendeu um par de tênis e algumas roupas quase novas.

Ezequia entretanto, quer ir mais longe. E porque possui mestrado e doutorado e tudo mais: sabe que não tem pra onde ir. Adapta-se, sobrevive. Contradiz todas nossas regrinhas.

Fevereiro de 2001
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