Indiferentemente mas tanto quanto

Tarde da noite, durante uma esticada na nossa jornada alguém lembrou dos tempos em que não existiam os computadores.

"E como se fazia?" A pergunta escapou de uma boca equipada com uma alegoria ortodôntica reluzente que, apesar de corrigir os dentes, ocasionava uma sibilação cuspidenta.

Nostalgicamente os veteranos esforçaram-se em explicações ilustradas, que diziam mais respeito ao espírito da época, do que sobre o "como se fazia". Depois de revolverem alegremente a terra do tempo a procura de pequenos significados fossilizados, chegaram a uma original conclusão: o trabalho, embora possa parecer, não era mais duro do que é hoje. Divertia-se mais? Não houve consenso sobre essa questão. Lembrar torna mais feliz ou menos trágico o passado. Ficamos sem saber.

Ontem totalmente à deriva nos mares virtuais acabei abrindo uma página de Mallarme, não movido pela minha limitada erudição, mas porque a descrição da página era a seguinte: Stephane Mallarme (1842-1898) Fotografado por Paul Nadar. Fiquei curioso, dois cliques e aparece o poeta sentado com uma pena na mão direita próxima a um tinteiro. Um papel em branco sobre a uma pequena mesa e uns livros completavam a composição solene. Para nós que operamos máquinas espertas que apagam, copiam, cortam, colam e corrigem, fica até estranho imaginar a pena de Mallarme deixando o tinteiro e desenhado palavras úmidas no papel, de prima:
Seria
pior
não
mais nem menos
indiferentemente mas tanto quanto

E Mozart como se virava sem ao menos um ibook. Dali sem Photoshop, devia ser surreal.
Copérnico, Newton, Michelangelo, Goethe, da Vinci, todos construiram suas obras totalmente unpluged.

Mas os mais próximos do nosso tempo é que me deixam muito intrigado: Einstein sem caculadora cientifíca., Chapplin sem dublê, Ford sem marketing, meu avô sem dinheiro. Como eles conseguiam?

Bem, não precisamos ir longe, a pouco mais de uma década uma arte final era uma colagem artesanal feita de papel fotográfico e cola de sapateiro, executada sobre uma prancheta com régua paralela e esquadro. E um comercial era editado em moviola: um engenho muito louco, onde a película percoria um caminho ziguezagueante sobre rolamentos, até ter a sua imagem projetada numa pequena tela de vidro na frente do editor que, ia cortando e montando o filme com uma espécie de guilhotina.

Certamente o Oliveto começou sua coleção de quarenta e poucos Leões com filmes montados dessa forma. Provavelmente, para materializá-los, ele usou uma máquina de escrever Lettera 45 da Olivetti, nada de copy, delete, paste, save e print. Tudo à unha, quando muito um Errorex. Depois o roteiro deve ter sido novamente datilografado numa IBM elétrica, em papel timbrado com a ilustríssima marca DPZ, e então seguido o seu caminho de glória.
Divertia-se mais?
Não sei não, eram tempos confusos aqueles. Depende.
Ficamos sem saber.
Março de 2001
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