Glória ao Merthiolate

Numa tarde chuvosa de outono, as tropas americanas faziam a sua ofensiva final contra as últimas posições alemãs, entrincheiradas atrás do cesto de roupas sujas. Ao sinal do tenente Larry Thompson os fuzileiros partiram para o ataque decisivo contra o inimigo.

Apesar de seus 12 anos Larry já considerava-se um veterano naquele território. Afinal fazia dois anos que ele e a sua família tinham desembarcado, de mudança, para a casa nova. Mas todo o seu conhecimento do campo de batalha não foi o bastante para evitar o terreno minado por um cocô ainda fumegante do vira-latas Duque. O efeito foi devastador, embora suas botas não tenham atingido o centro da massa, o contato foi suficiente para deslocar o pé de apoio, fazendo com que o tenente se esborrachasse na aspereza abrasiva do chão de cimento. Fui atingido, droga! pragueou.

Como um fuzileiro nunca abandona sua arma, o cotovelo direito é que funcionou como trem de pouso. A pele esfolada num instante começou a sangrar. Malditos alemães, resmungou. Enxugou com as mãos sujas a lágrima covarde, pintando a cara de sujeira. Tentou, por instinto, chupar a ferida mas era impossível, por mais que espichasse os lábios num bico desesperado, o ferimento permanecia inacessível à saliva anestésica. Malditos alemães, repetiu mais uma vez. A jornada de sofrimenrto estava apenas começando, ele sabia.
De volta ao regimento, limpou cuidadosamente os pés antes de entrar em casa. Entrar na base com cocô nos coturnos era corte marcial na certa, sem apelação.

Tinha que cuidar rapidamente do ferimento antes que começasse a gangrenar, já sentia sua mão adormecer. Não, não deixaria que seu braço fosse amputado. Entrou no banheiro e trancou a porta. Ninguém o veria numa circunstância tão desfavorável. Calma Larry, já estivemos em situações piores, refletiu.

Lavar bem, recomendava o tio que era médico. Com dificuldade colocou o cotovelo sob a torneira da pia. A água parecia pelando e gelada ao mesmo tempo. Aos poucos foi ficando morma e amiga. O ralo engolia o redemoinho cor de rosa. Dava sono ficar ali, daquele jeito. Acordou. A sensação de formigamento na mão aumentava, estava fria. Tétano, com certeza.
Abriu o armarinho sem pensar muito, algodão, band-aid, encontrou o pequeno vidro com o rótulo borrado pelo própro conteúdo. Teve que usar a boca para abir. A tampa possuia uma aste de plástico que terminava numa pequena espátula, perfurada como uma grelha, para a aplicação. Larry, faça o que tem que ser feito, decidiu.

Ai! Ui! Ah! Ah! Uuu! Aaai! Aaaaaiiii! Uuuuuui! Uiuiui! Você é um homem ou um rato, Larry?
Por esse ato de bravura, o tenente Larry Thompson, do Décimo Regimento de Fuzileros, foi condecorado com a cobiçada Casquinha de Ferida, honraria só conferida aos mais valentes soldados do corpo de fuzileiros.
Tempos heróicos aqueles. Larry orgulha-se de ter pertencido ao Décimo, uma geração que conheceu de perto os efeitos do merthiolate, que os bravos rapazes pronunciavam: metiolato ou metiolate. Por isso, foi com decepção que recebeu a notícia que o medicamento será retirado, para sempre, das frentes de batalha.

Para que servem então as guerras, senão para gerar homens de fibra? Perguntou-se.
Quem se importa, são outros tempos, de guerras diferentes. Disseram que o merthiolate está sendo retirado por causa do mercúrio que quando absorvido em excesso pode "provocar danos cerebrais irreverssíveis". Larry, seu cérebro estará contaminado?

Na verdade o que muda é o princípio ativo, a marca continua, sai o tiomersal e entra o cloreto de benzalcônio. Ainda bem, Larry, sua luta não foi em vão.

O ardor será o mesmo? Com que têmpera serão forjados nossos rapazes, daqui para trente, Larry?

Dirigiu-se até o banheiro, abriu o armarinho, procurou. Ainda tinha um pouco no vidro.
Pensou, tentou lembrar-se da última vez. Sabia que tinha usado a droga mesmo depois da guerra, mas só conseguiu lembrar-se daquele distante combate.


Maio de 2001
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