Fogo amigo

Um compasso obstinado e ameaçador abre a cena - Marte, o mensageiro da guerra de Gustav Host - de repente os trompetes, as trompas, os trombones e todos os metais invadem a orquestra como jamantas com seu tema destruidor. A música arde e a atmosfera se inflama. O ritmo marcado, vai produzindo um efeito delirante de redemoinho insano que não admite compaixão em seu percurso direto e brutal.

Muito antes, na África Oriental, há quase dois milhões de anos, onde as provas mais aceitas da nossa evolução se mantiveram, viveram dois tipos de hominídeos. Um, denominado Zinjanthropus, parece ter sido vegetariano. Sua linhagem desapareceu. O outro, o Homo habilis, como Leakey, seu descobridor, o chamou, era carnívoro. E também matador, fabricante de ferramentas e de armas. Dessa linhagem, ao que tudo indica, nós humanos, descendemos.

Bem, que o homem é uma criatura violenta, cruel e cínica, não é nenhuma novidade, nem pede grandes justificativas teóricas. Ao contrário, quanto mais tentamos explicar, mais nos complicamos em evasivas considerações morais, ingênuos cientificismos e outras hipocrisias da época, a propósito, uma característica da espécie.

Do mesmo modo, não é necessário longos recuos históricos para atribuir às guerras praticamente todo o nosso extravagante conforto burguês. Do front às gôndolas é um pulo, parece essa foi a história do fax, do vídeo-fone, de tecidos, enfim, de tudo o que os serviços militares de inteligência julgaram adequado a nós, paisanos.

É assim com todos os produtos que já não representam, militarmente falando, nenhum diferencial competitivo. Ou porque o inimigo também os incorporou ou porque surgiram opções mais avançadas. Por isso, quando deixam de agregar valor à tropa e passam a ser percebidas como ultrapassadas, é hora de dar baixa às patrióticas invenções, com a merecida recomendação à condecoração por bravura.

Em tempos de paz, infelizmente, o mercado só pode contar com a sucata da NASA e da Fórmula 1. É raquete de tênis com não sei o quê da NASA, gasolina com tecnologia da Fórmula 1 e assim em diante. Às vezes, surge uma novidade de algum serviço secreto, mais nem se compara às ofertas da indústria bélica.
Entretanto, a grande novidade dessa guerra, tem vindo das palavras usadas para descrevê-la. Não houve, nem mesmo nas mais poéticas batalhas de todos os tempos, expressão tão ridiculamente guerreira como “fogo amigo”. Parece que o jargão não é novo entre os profissionais, entretanto, só agora foi disponibilizado, pela mídia, para o consumo civil.
Fogo amigo, como tem sido amplamente divulgado, define as situações em que os soldados viram alvo dos próprios companheiros. Mais ou menos como um gol contra, tentando trazer para os nossos referenciais de índole pacífica. E foram necessários apenas dois substantivos para descrever essa realidade inimaginável, do medo adrenalinado misturado à incompetência tática. Como era de se esperar, na hora do pega-prá-capar, vale a lei do antes ele do que eu.

Como figura de linguagem, “fogo amigo” descreve com clareza as situações onde a atitude impensada produz um comportamento contrário à própria intenção, bem como as freqüentes situações em que se é vítima da equivocada boa intenção alheia.

Seu frescor semântico, se é que isso existe, é que “fogo amigo” remete a um cenário contemporâneo. Portanto, sua precisão significativa é a clara associação com fatos de conhecimento geral.

Por exemplo, de agora em diante, podemos dizer que o presidente foi vítima do fogo amigo, por conta das declarações do seu ministro. Da mesma forma, a balança comercial pode ser atingida pelo fogo amigo da política monetária.
Assim, toda vez que aquilo que deveria ser cooperação transformar-se numa trapalhada, a expressão vai cair bem para descrevê-la. Ou seja, quase sempre.

Como toda novidade da cultura de massa, pelo excesso de uso, pode ser que acabe tornando–se vítima do fogo amigo do seu próprio sucesso.

No plano do comportamento humano, fica evidente que “fogo amigo” é mais que adequado para simbolizar todas as inexplicáveis atitudes contra si mesmo. Nesse sentido, é a própria metáfora da guerra.




Para ler: Capítulo lX - Mitologias De Guerra e de Paz em: Para Viver os Mitos de Joseph Campbell - Editora Cultrix, 1997

Para ouvir: Gustav Holst – The Planets, Op. 32 – Saint Louis Symphony Orchestra – Walter Susskind, Regente – MMG, 1975

Março de 2003
Portfolio ...|... Revista ...|... Below ...|... Jornal ...|...Design...|... Contato ..|..Alltype..|