Apenas um bar sem TV

Mais um dia ganho, mais um leão morto. As chaves largadas no lugar de sempre. Acho o controle remoto, que nunca está no lugar de sempre. Automaticamente aponto para a tela sem vida da TV, encontro um jornal, entram os comerciais. Assisto com a atenção e respeito que merecem os trabalhos dos meus coleguinhas. Retorna o jornal.

Ao contrário da maioria, aproveito o fim do intervalo e vou até a cozinha apanhar uma cerveja. O bom nível me surpreende. Abro a geladeira. O horário nobre anda justificando o nome, concluo, com alguma inveja profissional. Fico paralizado inspecionando aquele espaço friorento. Namoro a embalagem Tetra pak do leite, encaro o hamburguer estampado no rótulo do catchup, desprezo a beringela solitária - talvez porque não tenha nenhuma marca. O vidro de tomates secos, entretanto, prende minha atenção, seu rótulo é como um vestido elegante num corpo de linhas suaves, nem precisa dizer que é importado, claro. Temos ainda muito que evoluir no ramo de embalagens.

Enquanto estou domesticamente hipnotizado, as pessoas vão sendo baleadas, sequestradas, afogadas e soterradas na TV. Entre escândalos locais, rusgas internacionais e misérias africanas. Ultimamente quando assisto ao noticiário, confesso, essas loucuras me tocam cada dia menos, isso porém, me incomoda cada vez mais.

Cuba, Kennedy, Vietnan, 64, 68, Andraus, Joelma, Herzog, Afeganistão, Bateau Mouche, Chico Mendes, Malvinas, Golfo, Candelária, Bósnia. Separados por milhares de intervalos comerciais, foi assim por pelo menos metade do século. Isso de alguma forma aumenta a nossa responsabilidade sobre o que veicular entre uma tragédia estúpida e um genocídio insano. É preciso ser no mínimo honesto. Acredito, com essa postura, estar modestamente contribuindo para um mundo mais razoável. Se não puder ser assim farei outra coisa. Mas o que?

Pousada não dá mais. Depois dos programas de demissões voluntárias, adotados pelas empresas, o mercado nessa área ficou inflacionado. Um bar? Essa idéia me persegue faz tempo. Abrirei "o bar", aquele que todo mundo reclama que falta. Encherei a taça da noite entediada, ocuparei o vácuo da falta de assunto, colocarei uma gravata borboleta no colarinho do chopp, o mais bem tirado da cidade. Já tenho tudo esquematizado, até o nome, que enxergo em neon quando esse assunto entra na minha imaginação, sem bater nem pedir licença.

Mas esse plano B está por hora descartado, uma vez que ando em paz com a minha carreira. O de três dedos, o uper-cut, o saque, a passagem de guarda, tudo isso eu melhorei ao longo dos anos. Afirmar que além disso tudo estou mais modesto seria cínico, mas minha vaidade não ultrapassa os limites tidos como razoáveis no meio. E tenho motivo para isso, nunca inscrevi em festivais nenhuma peça que não tivesse sido realmente produzida. Jamais chupei trabalhos de anuários. Em nenhum momento usei outra arma para competir a não ser o talento. E ainda assim venho acumulando, com orgulho, minhas medalinhas.
Outro break - volto para a sala com a cerveja.
Fecho os olhos. Penso naquela idéia que caiu no meu colo no chuveiro. Não contei pra ninguém, nem escrevi com medo que fosse surrupiada, sabe lá. Escondo na cabeça, no compartimento dos desejos inconfessáveis. Todo dia dou uma lembradinha com medo de esquecê-la.

Fico aqui, de boca aberta, por uma pequena eternidade, cansado. A cerveja já começa a esquentar. Assisto o pessoal se matando na telinha cinqüentona, pensando no meu bar - já tem até o nome. Sei, no íntimo, que o meu lugar é desse lado do balcão. Mas esse sonho é como um esconderijo, um refúgio alienado. Infantil mas necessário à sanidade. Não colocarei televisão no meu bar, só na Copa do Mundo, mas aí é diferente. Mudo de canal, acho uma partida de futebol, no Maracanã, outro cinqüentão. Mal acabo de sintonizar e sai um gol, feio por sinal. Percorro os não sei quantos canais.

O mundo arde e sofre. Logo em seguida, canta e dança, corre, tem fome, caça. É brega em muitos idiomas. É fantástico. É comum. Tem 29 polegadas. Um comercial, assisto.
Como comercializar coisas, no tempo que separa o resgate de um submarino inerte e radioativo, e uma manifestação explosiva em Gaza? Continuo não aceitando o mal gosto e o vulgar, por mais que a vida se apresente dessa forma na TV.
Essa é a minha parte, isso eu posso fazer. Amasso a latinha.

Novembro de 2000
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