Blaupunkt.

Outubro de 2003

Tinha uma época em que se identificava o tipo pelo toca-fitas de gaveta que carregava nas salas de espera dos cinemas e nas esperas dos restaurantes. Suponho que até mesmo nos quartos de motel. Era geralmente uma pessoa comum, fisicamente quero dizer, às vezes meio fortinho, de vez em quando ossudo. Claro que havia também os gordos e magros, mas eram exceção.

Não seria um totalmente inadequado chamá-lo de babaca, mas em tempos politicamente corretos melhor denominá-lo de: portador compulsivo de toca-fitas de gaveta ou PCTG. Esse comportamento estranho tinha, evidentemente, como toda piração, uma justificativa racional bem razoável: se deixado no carro a maravilha tecnológica fatalmente seria imediatamente farejada e atacada pelos abutres urbanos que, já naquele idos, infestavam as ruas de São Paulo.

E, além do prejuízo provocado pela perda do som, ainda corria-se o risco de ter o vidro da Brasuca (Brasília) quebrado, se o serviço não fosse feito por um profissional qualificado. Havia caras que mesmo quando guardavam seus Milequina (Volkswagen sedan 1500, o saudoso Fuscão) em estacionamentos retiravam os toca-fitas alegando que os manobristas podiam mexer no som, o que era o cúmulo do comportamento invasivo. É claro que tinha também o lado exibicionista do cara, que carregava o som como um crachá para mostrar para todo mundo a gravidade de sua doença. Nem é preciso dizer que ao seu lado havia uma namorada igualmente comprometida espiritualmente - namorada não, esses tipos nunca tinham namorada: era sempre noiva.

Psicologicamente, não saberia dizer em que fase do desenvolvimento esse estranho comportamento poderia remeter. Seria o exótico fetiche, um substituto do seio materno uma chupeta transitorizada, resíduo comportamental da fase oral não resovida? Quem sabe, uma fraldinha eletrônica de estimação? Nessa época meu carro tinha um som tão desgraçado que me fariam enorme favor se o roubassem, embora a perda afetiva fosse irreparável. Por isso, não posso deixar de considerar que esses comentários possam conter algumas distorções provocadas por um certa inveja.

Chamar o velho rádio Blaupunkt de som seria um exagero. Uma vez que, as ondas que os alto-falantes lançavam ao ar - se é que a mistura de nicotina, gasolina e outras fumaças pudesse ser considerada ar –, fundiam-se com as vibrações da lateral da porta esquerda, reverberavam na molinha do porta luvas, entravam em fase com um coral de arruelas, parafusos, latas, pinos, mancais, tuchos, guarnições e reparos, transformando cada música numa sinfonia única. Os hits da época eram acompanhados por uma sensacional cozinha percusiva. Levada não apenas pelos graves dos alto-falantes, como também pelos amortecedores vencidos, maltratados pelas irregularidades da esfarrapada camada asfáltica que revestia as ruas.

Tudo isso, sem contar com as interferências dos buracos de verdade que, quebravam o ritmo dando um colorido todo urbano e moderno ao concerto. Agora, espetáculo mesmo é quando chovia e o limpador de pará-brisas fazia sua participação especial na avenida. Nota dez em harmonia. Possuia um swing inigualável. E na sua evolução ruidosa pelo asfalto molhado, esparramava alegre o confete prateado das gotas de chuva. Ao subir, no sentido anti-horário, dava uma paradinha que com o tempo se tornava hipnótica, tanto pelo movimento, quanto pelo som que produzia.

Na volta, quando a palheta do lado do motorista alinhava-se em 90°, a oposta já estava uns dez graus à frente e despencava rapidamente, produzindo um apitinho muito próximo do inaudível, um show. Só vendo. Então começava um novo compasso, no tempo forte como tem que ser. Detalhe, não podia mudar de estação. Não é que não desse certo. É que havia uma, acho que posso chamar assim, sintonia fina para minha estação favorita que requeria uma certa concentração. Era como tentar descobrir o segredo de um cofre: precisava pegar no botão do dial com carinho e ir girando de um lado para o outro até o som ficar cristalino. Uma operação que não dava para fazer, por exemplo, com o carro em movimento. Às vezes levava um tempo. Isso não seria um grande problema se o carro não fosse o lugar mais apropriado pra se iniciar novos relacionamentos. E também, se o rádio não fosse, apesar de meia boca, a coisa mais importante que existia naqueles tempos. "E não é que todas as mina tinham as manha de mexer na porra do rádio. Caralho!"

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