Ela pensa que toco piano num bordel

Tenho guardado comigo uma edição recente de Veja que chamei de histórica, por conter, na minha opinião, os piores anúncios já feitos e assinados pelas melhores agências de propaganda do país. A observação sobre as agências é importante para registrar que não se trata simplesmente de anúncios ruins, presença obrigatória na midia de todos os tempos - até porque os bons, só o são se comparados com maioria meia-boca. Assim é que tem ser.

Até aí tudo certo, não faz tanto tempo que propaganda passou a refletir toda essa glamurosa dignidade, a incorporar esse ar inteligente e a assumir-se como manifestação máxima do talento humano em todo seu esplendor. A clássica afirmação de um publicitário das antigas: "Não digam à minha mãe que estou trabalhando numa agência de propaganda, ela pensa que toco piano num bordel em Paris". Parece representar bem a autopercepção que se tinha da profissão, num passado mais ou menos próximo.

Antes um pouquinho, desse passado mais ou menos próximo, vejam que interessante: a pioneira Escola Superior de Propaganda e Marketing surgia como um departamento do MASP e nem tinha a palavra marketing incorporada ao nome. Sua criação foi idéia de Pietro Maria Bardi, então diretor do museu, que tinha o sonho de montar uma escola de “arte publicitária” - seja lá o que ele imaginava fosse isso. Estamos em 1951, no início, havia apenas um curso livre de propaganda.. "Com o passar dos anos, segundo a escola, acompanhando a evolução do mercado, o curso incorporou o marketing, transformando-se finalmente em uma escola de nível superior, a partir de 1971". A partir de então nossa atividade nunca mais foi a mesma.

De um lado, o marketing começou a fazer parte da nossa vida, da parte chata. E de outro, o ensino formal conferiu à propaganda a decência necessária para atrair as filhas e filhos da classe média (burguesia, para a militância), com sua necessidade inexplicável, embora compreessível, de diplomas. Mas, ainda que cheio de contradições, o resultado desse nosso processo têm sido bom, pelo menos no que diz respeito à qualidade criativa, os resultados de Cannes desse e de outros anos estão aí para mostrar.

Mas voltando a Veja, minha paranóia é que os mais afoitos comecem a fazer o seguinte raciocínio: se a agência que assina esse anúncio é boa, logo, esse anúncio - embora pavoroso - também é. Pensando bem, azar deles. Acho que toda pessoa tem que ter a manha de julgar sem se alterar pela inveja, nem pasmar-se diante da fama. Se não for assim, não faz sentido.

Por outro lado, sabemos que os anúncios tem mais ou menos a mesma história: um briefing, um prazo e um preço. Os perigos moram nas variáveis que envolvem cada um desses estágios. Inclua-se aí os níveis de aprovação, os critérios de julgamento as aspirações de resultado, as limitações de tempo e dinheiro. Bem como as pesquisas, as ansiedades, as objetividades, os preconceitos e as desculpas,. Não menos importantes são, os exercícios de poder, as inseguranças disfarçadas, as omissões estratégicas e as ausências planejadas. Dessa ebulição caótica devem sobreviver intactos: títulos, cromos, textos e artes, tudo perfeito. Só então, fornecedores abnegados materializarão o anúncio, encaminhado-o para os veículos, no mínimo tolerantes, pois a essa altura o prazo já era. Na maioria das vezes dá certo.

Só não dá quando: alguém não quer, não permite, não entende ou não se importa.
Tomara a tendência seja passageira, tomara não seja tendência, apenas um tropicão, um acidente em um número editorialmente sem grande importância. Tomara eu esteja equivocado ou apenas com inveja.

Junho de 2002
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