Angel of the morning.

Julho de 2003

Não tem como negar, existe um dial implantado na alma de cada paulistano. Portanto, falar sobre rádio é uma coisa quase que natural pra gente. Dando-se, é claro, um desconto para os brancos da memória. Por isso, algumas sensações não encontram datas nem nomes no emaranhado da vida.

Acho que o primeiro neurônio que fritei, com generosas doses de rum barato, foi o do bibliotecário: aquele que organiza, cataloga, põe data, essas coisas. Em seguida perdi mais alguns bons por aí, outros foram ficando gordos por falta de exercício.

Mas, acredito que os sobreviventes dão conta da tarefa. Charutinho, personagem de Adoniran Barbosa. O Trabuco, programa de Vicente Leporace. Música na Veia, do Zuza Homem de Melo. Jornal da Manhã, Patrulha Bandeirantes, Concerto do Meio Dia. Reale Junior, Maurício Kubrusli, Fiore Gigliote, Osmar Santos. Eldorado, Jovem Pan, Bandeirantes, Record, Difusora, Excelsior.

Esses, e muitos outros, personagens, locutores, programas e estações me amamentaram radiofônicamente pela vida, digamos assim. Não estou citando as músicas, pois a lista seria muito grande e, pior, óbvia. Já grandinho, tenho que confessar, que devo muito às programações noturnas. Seguramente, não teria sobrevivido a tantas madrugadas de trabalho em claro sem um radinho para apoiar. Era sempre igual: invariavelmente havia uma hora em que a consciência da impossibilidade de cumprir a tarefa invadia o ambiente. O tempo deixava de fluir, às quinze para as três, os segundos ficavam licorosos como mel, os olhos ardidos não se arriscavam a piscar. Eu ficava preso para sempre no inferno da urgência. Acorrentado à eternidade da noite. Sufocado no ar espesso das impossibilidades. Porém, quando tudo parecia irremediavelmente perdido, do surrado radiogravador surgia uma luz salvadora. A introdução instrumental prenunciava a bonança. A voz de Merilee Rush começava doce: "There'll be no strings to bind your hands/ Not if my love can bind your heart".

Aos poucos minha alma ia sendo resgatada da danação, mesmo sendo roqueiro radical, era obrigado a render-me à salvação, vinha o refrão redentor: "Just call me angel of the morning, angel/ Just touch my cheek before you leave me oh baby/Just call me angel of the morning, angel" E, então, o tempo voltava a passar, existia uma pequena chance de dar certo, de dar tempo. De volta ao trabalho.

Não saberia enumerar quantas vezes passei por experiências desse tipo mas, com algumas variações, a situação era basicamente a mesma: primeiro o desespero a seguir a companheira redenção do rádio. Às vezes fanhosa, algumas bem baixinho, pra não acordar o filho pequeno. Outras muito alto, pra espantar os fantasmas.

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