Pra ontem !!!

O Job pardo pediu autorização e pousou sobre a mesa. Apesar da total informatização da agência, implantada desde 91, o velho envelope permanecia na ativa. Mil vezes reaproveitado, resistindo heróico como um fuzileiro. Curativos mal feitos com durex remendavam o corpo amassado, alguns ferimentos, os mais graves, exigiam até fita crepe para preservar a sua estrutura.

E ele nem tinha sido fabricado para esse fim. A agência possuia divisões de envelopes, aquartelados num armário cuidadosamente vigiado. Questão de economia, dizia o alto comando.

Mesmo assim não podia lamentar-se. Originalmente pertencia a uma conhecida produtora de comerciais, havia sido mandado para aquele fim de mundo com a missão de levar um orçamento que, diga-se, nunca foi aprovado e nem se teve notícia. Intimamente suspeitava que era só uma manobra especulativa. Entretanto, tivesse sido ele enviado para a W /Brasil, automaticamente seria aberto, seu carregamento imediatamente retirado e ele atirado ao lixo. Com muita sorte, reciclado. Missão cumprida. Um fim digno, todavia uma vida curta.

Em vez desse destino honrado e previsível, os astros haviam-lhe reservardo uma jornada mais longa, ainda que naquela longínqua frente de batalha. É, não podia lamentar-se, no fim estava levando uma vida divertida e sem dúvida emocionante.
O dia-a-dia era meio monótono, é verdade, só pedidos de rotina, nenhum glamour. Circulava muitas vezes vazio, sem nenhuma informação importante só com o PIT grampeado, sentia-se, nesses dias, apenas um número.

Mas preferível essa rotina a angústia de ter sido dado como desaparecido, em novembro de 99. Foram três meses de terror: esquecido embaixo daquelas revistas e jornais. Tinha até embalagem do Mac Donald's naqueles escombros. Essa tragédia havia deixado profundas marcas na sua alma, até hoje ele sonhava que estava sendo levado pelo Lixo Que Não é Llixo, e durante o dia não podia nem ouvir o sino do caminhão que já entrava em parafuso. Mas graças ao zelo de uma estagiária, foi resgatado daquele inferno e mais uma vez recolocado nos trilhos do seu destino.

Tão inesquecível quando essa passagem, só que no sentido inverso, foi quando teve a honra de carregar o Edital de Concorrência do Governo. Não, isso não era pra qualquer um. Exigia resistência e coragem, e ele tinha as duas qualificações. Mas, sobretudo, tinha carisma. Até a sua cor parda possuia uma textura que ele, nessa época, achava semelhante a um papel artesanal. Exagero é claro, mas naquele momento todos os egos da agência estavam inflados. Afinal, "fazer" um edital era sinal de maturidade empresarial. Foi nesse período que todos os dedos da agência deixaram nele sua marca, algumas de suor, outras indeléveis, engorduradas pelas pizzas.

Mas nenhum momento se compara ao dia que daria sentido àquela sua odiséia tão incomum. Nem era um superjob, um anúncio de jornal para uma revenda de automóveis. Mas no instante em que o grampeador furou pela milésima vez a sua carne anexando firmemente o PIT, teve a mesma sensação que há muito tempo acompanhou um trabalho que conquistou ouro no Colunistas local e prata no nacional.Um bem-estar, como se de alguma forma já pressentisse o resultado glorioso daquela missão. Embora fosse apenas um mensageiro, e talvez por isso mesmo, possuia uma fina sensibilidade para esse lado mais inexplicável das coisas.

E foi assim: ele e a sua sensação gostosa desembarcaram na criação. Ninguém deu bola, apesar da anotação em vermelho no PIT: pra ontem!!! Desse jeito mesmo, com três pontos
de exclamação. Ficou ali encostado a manhã toda. De vez em quando alguém o apanhava, fingia que o estudava e tornava a colocá- lo no mesmo lugar. Estranhamente a sensação não o deixava, nem quando colocaram um outro envelope sobre ele, coisa que abominava, nem assim a sensação desapareceu.

À tarde, foi entregue a um estagiário. Bom, não é sempre que a intuição acerta, pensou. Mas o moleque mandou bem: de início aquelas sacadinhas meio ingênuas, uns trocadilhos, selecionava os melhores, jogava o resto fora e partia dali, tudo de novo e de novo. Não eram títulos brilhantes mas já tinham idéias.

Para ele aquele era "o Job", ali estava tudo o que precisava, enfim um trabalho que não valia nota, por isso tinha importância, a travessia do rio, o caminhar sobre as brasas. Mais um título. É…mais ou menos. Melhor esquecer tudo e começar de novo…
Suas sensações não se enganaram, dali viria coisa boa. E veio. Não deu prêmio nem nada, mas se existisse uma premiação ao prazer de criar, seria no mínimo finalista.
Nunca o velho envelope compreendeu muito bem aquele dia, mas fez toda a diferença.


Dezembro de 2000
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