Quem não faz, toma

QUEM NÃO FAZ, TOMA.

Da janela da criação o noviço Lee Lai Out observava o vale monótono e misterioso. Não, não poderia esperar mais, alguma coisa em seu interior se esgotava, estava tornando-se um estagiário senior e isso não era bom, havia cobranças, dúvidas e dívidas.

O entusiasmo calouro transformara-se numa resignação preguiçosa, suas melhores idéias jaziam em prints de baixa resolução. E, embora preparado para esses martírios iniciáticos, era obrigado a admitir que não estava dando conta da situação.

Desiludido, Lee olhava a paissagem tentando incorporar a sua clareza. Estava decidido, não passaria de hoje. Daqui a pouco iria aconselhar-se com o Diretor de Criação do mosteiro o célebre Ta Kua Ze Bom - um dos mais exigentes monges criativos vivos, descendente direto do lendário clã dos So Ka Bo Ta , campeões inigualáveis da persuasão e imbatíveis guerreiros nos festivais.

Lee Lai Out despediu-se do vale que já começava a ser coberto pela sombra magestosa da colina e silenciosamente dirigiu-se à sala do mestre criativo.
Por mais que o mestre abominasse os excessos ritualísticos, sua existência lendária dava ao ambiente uma atmosfera solene, afinal dele irradiava toda a milenar tradição criativa do leste.
O discípulo saudou o mestre com respeito e foi direto ao assunto:
-Oh, amado mestre, tenho que confessar que já não estou tão seguro sobre o meu talento. Encontro-me cheio de dúvidas, por mais que me esforce só consigo realizar um trabalho mediocre sem brilho....

O sábio não esperou o fim das lamentações do jovem neófito e educadamente o interrompeu com um gesto suave. Respirou profundamente, uma, duas, três vezes. Então, a luz da sabedoria ancestral pode ser sentida em cada molécula daquele espaço sagrado. Quando o silêncio enfim tornou-se paz, começou a falar, chamando Lee carinhosamente pelo apelido:

-Carapato, para encontrar as pérolas mais valiosas precisa-se saber exatamente onde procurá-las.

Com a sua inteligência e dedicação, se você passasse um tempo numa comunidade de pescadores de pérolas logo aprenderia tudo sobre as ostras. Descubriria sem dificuldade que as mais valiosas estão a grande profundidade.

Observaria que: a maioria passa a vida mergulhando em profundidades seguras.
Alguns aventuram-se eventualmente em águas um pouco mais fundas.
Muitos mergulham nos abismos sem fim.
E pouquíssimos descem rotineiramente além dos limites.
Se você fosse uma espécie de Deus do mar, Carapato, para qual tipo de pescador você reservaria as pérolas mais preciosas?
Os primeiros são dignos, os segundos, nobres. Os terceiros são infantis e os últimos, iluminados, concluiu o mestre.
Agora com licença que eu tenho que criar uma campanha para amanhã, encerrou friamente a audiência.

Gafanhoto levou alguns segundos para refazer a sua alma, então respeitosamente retirou-se em silêncio. Naquela noite não conseguiu dormir, levantou-se e começou a escrever títulos, rafeou anúncios, folheou anuários, era preciso melhorar o seu fôlego para ir colher as pérolas maiores. Esse era o segredo que a párabola do mestre revelava, o véu começava a erguer-se, podia sentir isso.

Pois não é que em pouco tempo seus títulos começaram a ser aceitos no mosterio, os roteirinhos começaram a ficar mais pretenciosos, até o apelido de noviço começou a ceder espaço ao seu nome verdadeiro, sinal que começavam a respeitá-lo.

Um belo dia, entretanto, ao abrir uma revista, não é que Lee encontra um anúncio exatamente igual a uma idéia sua assinado por uma grande agência . Ficou mal, logo agora que estava começando a mergulhar a uma profundidade um pouco maior, nem abrira a ostra e já lhe roubavam a pérola, não era justo. Lee não pode deixar de pensar no salário que os criadores do "seu anúncio" ganhavam para isso, sentiu vergonha do seu lado ambicioso mas continuou não achando justo. Tudo bem, resignou-se, o mestre teria uma resposta para ele, assim era a vida dos monges.

E mais uma vez Lee olhou o vale, respirou a paissagem e caminhou sem fazer ruído até a sala do mestre.
E mais uma vez o iluminado interrompeu suas queixas com um gesto suave. Respirou profundamente três vezes e carinhosamente o chamou pelo apelido:
-Gafanhoto, assim é a vida: quem não faz, toma.

Fevereiro de 2001
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