Horário de Verão

Para começar tenho que pedir desculpas pela semana de atraso para abordar esse tema, tão importante no nosso dia-a-dia. Existem, entretanto, dois momentos no ano onde a nossa quase organizada vida se desorganiza de vez: o primeiro é quando começa o horário de verão e o segundo é quando ele acaba. Até há pouco eu incluiria o período de entrega da declaração de imposto de renda, porém faz uns quatro anos fiscais que passo esse pesado fardo a um profissional. Não há dinheiro que pague, garanto. Isso não quer dizer que não jusitifique uma pechinchada, tá pensando o quê?

Voltando o relógio, ou melhor, a fita. Os primeiros dias são o diabo. Pra começar sempre nos damos conta da mudança no dia, em cima da hora. Então renasce a dúvida: adiantar ou atrasar uma hora? E nós, iniciados nos princípios quânticos, conhecedores das curvaturas espaço/tempo, ficamos paralizados diante de tão prosaica questão. Põe na Globo, sugere nosso Anjo da Guarda.

Atrasado, desculpe. Adiantado o primeiro relógio, nos damos conta de que os nossos lares possuem muito mais relógios do que aqueles que foram fabricados com o objetivo principal de marcar as horas. Os computadores, os vídeo-cassetes e assim vai. Uma vez ouvi de uma pessoa que raramente usava o forno de micro-ondas, que aquele era o maior relógio que ela tinha em casa. Falando nisso o nosso ainda está com o horário antigo.

Esse ano nem o acirrado segundo turno ofuscou totalmente as costumeiras discussões entre os que são a favor e os que são contra a alteração de horário. Cabe registrar que vem crescendo a cada ano uma terceira corrente que defende uma mudança gradativa, ou seja: dez minutos por dia durante 6 dias. Seria menos traumática, argumentam. Existem também radicais que propõem uma alteração definitiva, para sempre.

O melhor de tudo isso é que o novo horário permite que toda essa discussão seja realizada sob a luz do sol, o que deixa todos os choppinhos muito mais dourados.
O pior é que se não cuidamos acabamos trabalhando até às nove horas sem se dar conta. Resultado: vivemos um pouco menos. Tudo bem, trabalhar até mais tarde faz parte. Mas sair, um dia que seja, com o sol ainda alto no céu dá uma sensação muito gostosa: como se florissem nossos ipês interiores. Uma hora a mais ou a menos nesse comecinho de horário de verão faz toda a diferença.

E, embora tenhamos uma vez por ano uma semana de cão, acredito que o horário de verão já pode ser considerado uma tradição popular, um ritual como a Páscoa. Se algum dia ele não mais se justificar do ponto de vista energético e for oficialmente abolido, acho que vamos sentir sua falta.

Quem sabe se torne um dia apenas uma celebração. E continuemos a adotá-lo em nome de objetivos não tão práticos, mas não menos patrióticos, como sair do trabalho "iluminado ao sol do Novo Mundo", citando o Hino Nacional.
Uma vez por ano, pelo menos, vamos sair do trabalho ofuscados pela claridade, olhando para cima. Surpresos porque ainda é dia e já estamos livres, vamos folhear a tarde como uma revista nova. Capturar a vida que já ia fugindo enquanto estavamos distraídos fazendo coisas importantes.

Superado o choque inicial; refeito o ego, consultado o superego. Caminharemos sonambulamente guiados por uma agulha magnética cambaleante. Assistiremos comerciais a nossa volta. Lembraremos de idéias tão esquecidas que parecerão novas. Olharemos outdoors, cartazes de banca e pontos de venda.

Sabiás ameaçados e poodles mimados cruzarão nosso caminho. Acharemos um número de telefone desconhecido no bolso e sentiremos saudades.
Mas sobretudo, teremos sede, muita sede. Pediremos um chopp que será consumido em três grandes goles separados por profundos suspiros e lambidas de beiço.
E passada a primeira semana mal dormida, a vida seguiria em frente. Mais acordada, um tantinho diferente.

Outubro de 2000
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