Foi muito pra cabeça

Dia 8 de dezembro de 1980 - Depois de uma gravação, John e Yoko voltavam pra casa em Nova Iorque. Na entrada do edifício, um maluquinho dispara cinco vezes. Queria ficar famoso, disseram. Ironicamente, ninguém lembra mais o seu nome: Mark Chapman. O sonho acaba em seguida, acho que a caminho do hospital, que diferença faz?

Quanto aconteceu, estava numa pequena agência de São Paulo chamada Pentágono. Naquela época me ocupava mais em entrar num outro circuíto de agências. Não que lá fosse ruim, porém eles atendiam muitas contas técnicas e eu procurava um lugar mais publicitário, embora não soubesse bem o que queria - se é que isso fosse possível naquele tempo maluco.

Não lembro mais como a notícia do assassinato do John Lenon chegou até mim. Escapam-me detalhes, horas, rostos e nomes. Por outro lado, a sensação ainda é muito viva: o dia foi engolido por uma luz surreal, o ar tornou-se grosso e os ossos incomodos.
A agência não ficou muito triste, a criação no entanto ficou arrasada. Mesmo assim, incorformados, fomos tomar umas cervas. Tenho que confessar que então nem estava curtindo muito o Lenon. Ele agora me parecia uma figura da mídia, com uma língua muito afiada para um pacifista, sempre com a Yoko pendurada no pescoço. Gostava demais de uma câmera, da imprensa, da fama. Mas tinha o direito. Afinal, como ele mesmo disse, era mais famoso que Jesus Cristo.

Minha geração já havia percebido como era, às vezes, difícil sobreviver à fama, mas, normalmente, morria-se afogado no próprio vômito, na piscina ou na banheira. Invariavelmente, louco pelo álcool ou drogas ou, quase sempre, pela ação dos dois. Só no mesmo ano de Lenon se foram o baterista do Led Zeppelin e o vocalista do AC/DC. Balas não combinavam com o Rock. Nem com coisa nenhuma, diga-se.

Anozinho complicado aquele. Complicado e inesquecível: a frieza germânica e a aparente boa intenção da abertura do general Geisel tinham sido substituídas pela truculência passional do general Figueredo. O estilo "prendo e arrebento" do novo governo parecia encher de esperança os corações incorfomados com a lenta e gradual, porém inevitável abertura. política.

Naqueles bons e instáveis tempos, a extrema direita explodia bancas de jornais e instituições ligadas à defesa dos direitos humanos. A OAB tinha sido vítima de carta bomba, nossa economia já não mostrava sinais de vitalidade, fechavamos o ano com uma inflação de mais de cem por cento. E, mais grave, estavamos terminando a década pagãos, tendo perdido duas copas do mundo. Da Alemanha fomos despachados pela Holanda e humilhados pela Polônia. E na Argentina, obrigados a assistir nossa volta ser antecipada por uma partida suspeitíssima entre Peru e Argentina, onde - isso nunca tinha acontecido antes - o Peru amoleceu, tomando meia duzia de gols.

Mas, apesar do baixo astral, a vida continuou. Se não me engano, logo no começo de 81, já desenlutado, fiz uns frees que eram meio um teste para uma agência pequena, mas muito legal, chamada Vox Populi, deu certo e lá fui eu cheio de vontade. A uruca de 80 havia passado.

Cheguei ainda em tempo de ganhar uns posters de fim de ano muito fortes. A imagem era uma foto em preto e branco de uma bola de Natal quebrada junto à balas de fuzil, formando um quadro muito tenso e violento. Uma metáfora obviamente clara do clima em que se vivia. O título da peça, composto em caixa alta e baixa na clássica Franklin Gothic, retratava uma frustração indignada e impotente: "Esse ano foi muito pra cabeça".

Um ano depois eu estava entrando na Marques da Costa, uma agência ainda mais bacana.
Bem que eu tentei garfar o poster que eles haviam feito para o infeliz ano de 80, mas já há muito estava esgotado. Não me lembro se trazia uma foto do John ou se era apenas all type. O título porém permanece inesquecível: "All you need is love".

Dezembro de 2001
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