O importante é ter charne

A cafeteira gargareja vaporosa insensando o ambiente com seu aroma estimulante.
A última Veja, folheada distraidamente, hoje chegou cheirando à tinta, carregada de eletricidade estática, como se tivesse saído de uma rotativa do outro lado da rua. De vez em quando um anúncio bacana quebra o rítmo do virar de páginas. Coincidência, nessa hora a cafeteira parece engasgar-se como se percebesse o fato. Um casal de pombos em cima da caixa d'água responde.

Vazamentos de óleo, escândalos de rotina, efeito estufa, tudo fica meio fora de foco diante das páginas duplas de publicidade. Tragédias diversas, convivem com o mundo da propaganda, numa relação cheia de contrastes. Mundos paralelos unidos por dois grampos de metal. Embalados, remetidos, entregues na portaria . Buscados, às vezes, de pijama, "os porteiros estão proibidos de abandonar a portaria com o objetivo de entregar revistas e/ou correspondências na porta das unidades deste condomínio" Cicular 06/01 de 15/02/01.Arghh!
Domingo de manhã, o cigarro já não faz tanta falta, como os anúncios de cigarro: O importante é ter charme. Ao sucesso. A decisão inteligente. Um raro prazer. Venha para o sabor.

Tudo bem, parar de fumar, mas a falta de anúncios deixa um vazio, uma sensação de abstinência publicitária. Mesmo quem nunca fumou tinha direito aos anúncios, ou será que consideravam-se audiência passiva?

Se o problema é esse, a solução seria dividir as edições em: para fumantes e não fumantes. Na edição dedicada aos fumantes, obviamente, os anúncios da indústria fumageira seriam permitidos. A princípio, acredito que na primeira renovação de assinaturas a edição de não fumantes ganharia de lavada.

Se sobrevivesse a esse duro golpe, o reparte dos fumantes teria que se contentar em ficar nas bancas em companhia das pornôs, ou seja, fora do alcance das mãos inocentes. É justo.
Passado um tempo, entretanto, as proscritas edições começariam a vender mais e mais, não por uma milagrosa contra reforma no mercado, mas pela presença dos maravilhosos anúncios que elas, certamente, veiculariam.

Porque revistas são compradas tanto por seu conteúdo editorial como pelo publicitário. Mesmo ponderados os juramentos solenes de cada categoria e os ideais mais mesquinhos dos profissinais de cada área, a realidade, ainda assim, não se altera.
Quando uma edição vem com muito anúncio a gente reclama e quando vem com pouco também: "puxa que mixo esse número".

Pessoas podem até não acreditar em propaganda, mas que gostam dela, gostam.
E como todo gostar é exercido de muitas formas. Tem gente que só gosta de criticar. Tudo é culpa da propaganda, que ao criar um sentimento de carência a ser satisfeito pelo consumo, não leva em conta que isso é, muitas vezes, impossível de ser realizado por uma enorme parcela, gerando então a frustração que vai se transformar em crime e violência..
Gente que gosta de propaganda ruim, não estou me referindo ao anúncio insosso que ninguém nota, mas aos horríveis, desses que marcam pelo bizarro. São os amantes da estética trash. Temos que admitir que, em matéria de recall, o genero é insuperável.
Existem aqueles que gostam de propaganda estúpida, agora sim estou me referindo ao anúncio insosso que ninguém nota, exceto eles é claro. Exceto numas, porque são a maioria. Na verdade, eles é que movem a roda.

E por fim, têm os que gostam da boa propaganda, presunçosos o suficiente para acreditar que o seu gostar pode qualificar alguma coisa além do seu plano pessoal. Ou da sua insignificante comunidade.

Como gosto é discussão, ninguém têm razão.

Ughh! Como ficou fraco esse café.

Maio 2001
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