Prelúdio para piano sem alça

Uma vez li uma entrevista do Hermeto Pascoal, na qual ele contava uma história muito engraçada do seu começo de carreira.

Na época, ele se apresentava numa casa noturna que tinha um piano totalmente desafinado. Todo dia ele reclamava providências ao dono do estabelecimento, que prometia mandar afinar o instrumento. Na noite seguinte, entretanto, lá estava novamente o Hermeto ao mesmo desafinado piano. Um dia, não aguentou, arrancou as teclas, colocou-as dentro do corpo do instrumento e foi embora, vingado. Um piano desafianado é dose, mesmo para quem tira música de panelas.

Essa entrevista foi publicada pela Folha de São Paulo e antecedia uma apresentação sua no teatro Municipal de São Paulo. Se eu não me engano, ele brincou, dizendo que faria a mesma coisa, caso o piano do Municipal não estivesse afinado.

Quem teve o privilégio de assistir a esse recital pode admirar o belíssimo piano negro Steinway & Sons, acostumado aos dedos mais virtuosos e amaciado durante décadas pelas obras dos maiores compositores, numa de suas melhores performances. Suas teclas de marfim e ébano conheceram mãos mais rudes, albinas de tanta cor que deram ao som. Artista e instrumento se entenderam no limite da capacidade expressiva de cada um. Uma apresentação irrepreensível.

Eu dei essa volta chegar no seguinte: quantos diretores de arte já não se sentiram como o Hermeto quando foram obrigados a encarar um computador todo desafinado. Porque embora não pareça eles são nossos pianos, é através dos seus teclados que compomos nossas pretenciosas melodias gráficas. E como os instrumentos, os computadores são únicos, ou seja, não existem dois iguais. Eu diria que cada um tem o seu timbre, só pra ficar na linguagem musical. Existem as gerações inesquecíveis e as séries marcantes. Da mesma forma, acontecem as grandes revoluções, como a invenção do piano, que praticamente condenou os outros teclados a uma categoria secundária. Hoje, os G4 poderiam ser comparados aos pianos de cauda, translúcidas obras de luteraria, peças de desing feitas sob medida para ocupar nossas nobres salas de criação e abrilhantar requintados saraus noite a dentro.

Mas voltando ao assunto, quantos diretores de arte têm à sua disposição máquinas muito inferiores ao seu talento, e passam a maior parte do seu dia brigando, ao invés de expressar-se através delas? É claro que os responsáveis por esse improdutivo modelo de bureau, possuem as mais fundamentadas razões para manter seus brechos eletrônicos em operação. Uma solução para esse problema, seria abrir esses museus à visitação pública e com a venda dos ingressos fazer um caixa para atualizar os equipamentos.

Quero deixar claro que ao abordar esse assunto, estou movido unicamente pelo propósito de colaborar para que o trabalho criativo dos diretores de arte possa ser materializado com todo o seu potencial. Mas se a conversa derivar para a mais valia, eu encaro numa boa. Afinal, é conflitante a convivência, num mesmo ambiente, entre carros novos e computadores velhos. Entre roupas da moda e impressoras ultrapassadas. Uísques escoceses e scaners paraguaios.

Mas embora pareça sempre o contrário, a vida é no fim cheia de justiça. Imaginem se o piano daquela casa estivesse impecavelmente afinado, quem sabe o Hermeto ficasse por ali, tocando para sempre, como no filme, A Lenda do Pianista do Mar. O mais provável, no entanto, é que as pessoas começassem a ir até lá para ouvir um músico extraordinário. Outros artístas de talento seriam atraídos e mais apreciadores da boa música passariam a freqüentar o lugar. Um dia talvez o Hermeto fosse embora, mas aí então a história seria diferente. Centenas de músicos virtuosos teriam como objetivo apresentar-se ao mesmo piano no qual o Hermeto tocou por tanto tempo. Seria uma casa de sucesso que sobreviveria aos artistas que por ela passassem, todos cresceriam nessas relações. Construiria-se uma reputação. Ambos teriam orgulho: os músicos incluiriam essas temporadas em suas biografias, e a casa, seus retratos autografados nas paredes, impregnadas de boa música e falsas lendas. Quanta diferença faria um piano bem afianado.
Quatrocentos e trinta e cinco Hertz, é essa a freqüência da nota lá, a partir da qual todo instrumento se afina. Só para lembrar que essa conversa é sobre tecnologia, sobre "princípios científicos que se aplicam a um ramo de atividade", segundo o Aurélio. Se as oitenta e oito teclas não estiverem afinadinhas, quanto mais bela a melodia mais a desafinação se sobressairá. Sem nenhum dó.
Portanto não adianta apostar unicamente no nosso talento gráfico. Hoje, sem tecnologia, somos capazes apenas de um resultado de segunda. O Guga com a minha raquete ainda estaria surfando em Floripa, apesar da sua indiscutível vocação. Mártires, evetualmente fazem milagres, não arte. Eu sei que contra a frágil lógica do meu raciocínio e a ingenuidade da minha intenção, se contrapõem um conjunto cruel de fatores chamado realidade. Cada um sabe da sua vida. Nem todo mundo pode arrancar as teclas do piano e partir para outra.
Uns nem querem. A outros falta um pouco de confiança, quem sabe?
Ainda sobre pianos, uma coisa eu posso garantir: tocar é muito mais realizador do que carregar.

Novembro de 2000
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