Foco, foco, foco

Palavras, palavras, palavras. Certamente é Shakespeare. Hamlet ou Macbeth? Não importa, se não é de uma, é da outra. O mesmo acontece com as sinfonias de Bethoveen: quando não é a Quinta, é a Nona. O trágico, entretanto, é que há algo de podre no reino da comunicação.
Nossa memória auditiva ainda guarda fresca a fase do “a nível de”, pronunciado até a exaustão pelos tecnocratas dos anos noventa e outros enganadores que pretendiam parecer-se tão sabidos quanto.
Deram-se mal, quando os guardiões da língua começaram ocupar espaço na mídia, alertando o competitivo vestibulando e o incauto cidadão que já começava a incorporar o estilo à sua pobre dieta vocabular diária. Hoje, tudo indica que o seu emprego mantém-se em índices endêmicos em alguns círculos, entre os quais, infelizmente, o nosso.
Depois disso, sobrevivemos ao bombardeio implacável das referências à globalização e ao terceiro milênio, que justificaram desde planejamentos de marketing até convocações para a Seleção. Assim, o novo século e a nova ordem econômica foram introdução e conclusão de nove e meio entre dez textos produzidos nos últimos anos.
Eis que entramos convalescentes no século XXI, e, mais uma vez, o fragilizado idioma é contaminado por uma palavra aparentemente inofensiva . Benígna em sua origem: focar, segundo os dicionários, queria dizer – até o século passado - formar uma imagem nítida ou ajustar um sistema óptico para que mostrasse imagens dessa forma. Em sentido figurado, significava fazer voltar a atenção, salientar, evidenciar. Já como substantivo, podia corresponder a centro, ponto, local, além do clássico conceito de ótica.
Tudo deve ter começado, imagino, em pequenas culturas inoculadas nas vísceras inflamadas das corporações. Durante algum tempo, sob a temperatura amena do ar-condicionado, circunscrita aos PowerPoints e ao ambiente asséptico das salas de reuniões, permaneceu inofenciva quanto a sua capacidade infecciosa. Começou então a ser difundida nos seminários e rapidamente disseminada pela irresistível tendência humana de incluir ao seu vocabulário qualquer palavra que distinga quem a pronuncie. Reproduzida nas águas estagnadas da literatura corporativa, ganhou escala e dimensão epidêmica. Digitada com generosidade inconsequente por redatores do jornalismo mal remunerado, conquistou as bancas. Foi assim, meio sem perceber, que contraímos mais essa: a febre do foco.
O delírio é inevitável: tudo é focado. Inconcebível um planejamento sem foco, uma empresa pode abrir mão de tudo, menos do seu foco. Foco no mercado, foco no cliente, foco no futuro. Tanto, que o desafio do novo Governo é focar as grandes questões nacionais.
Colaboradores focados, organizações focadas. A pessoa focada na sua integridade.
Focar as competências a empregabilidade. Foco na carreira.
Foco na marca, nas vendas, no valor para o cliente.
Na comunidade, na qualidade de vida. Foco no social
Foco no meio ambiente. Empresas responsáveis: focadas no cidadão
Vivemos uma síndrome multifocal, uma autêntica era Varilux.
Nessa progressão de significados, em breve, ao assistirmos nosso futebolzinho pela TV, vamos ouvir, em som direto, a voz esganiçada do treinador na beira do campo: “Foca! Foca! Cada um foca o seu! Cada um foca o seu! ”
Voltando ao princípio, Hamlet ou Macbeht?
Embora essa fosse a questão, acabo descobrindo um pouco mais na internet, num artigo assinado por S. S. Moorty.
Diz o texto, que “os verdadeiros amantes do teatro Shakespeariano, assistem e lêem suas peças não apenas pelas histórias emocionantes ou pelas tramas complicadas. A linguagem de Shakespeare é, em primeiro lugar, uma fonte vital para o nosso prazer”, afirma o autor.
E ao contrário do que supõe nossa vã filosofia, sua linguagem não deveria ser um obstáculo para a apreciação. Ainda que de difícil compreensão, o poder do discurso Shakespeariano está justamente no seu vocabulário, “espantosamente rico”, com cerca de 29.000 palavras.
Então Polonius pergunta: "What do you read, my lord?” Hamlet indiferente responde: "Words, words, words". Essa passagem, segundo o artigo, “sintetiza todo fascínio dos teatrólogos com o aspecto dinâmico da língua inglesa” a qual Shakespeare adicionou milhares de palavras e deu significados novos às palavras conhecidas.
Muitas palavras Shakspeareanas "seriam estranhas à platéia porque eram produtos de sua invenção ou foram usadas uma única vez.”
Então Moorty conclui: “Em Shakespeare o vocabulário recebeu mais atenção que qualquer outro aspecto da língua. Talvez porque seja esse o seu elemento mais simples e acessível. De qualquer forma, sua línguagem será sempre cativante e desafiadora.”
Fico imaginando: é tudo uma questão de foco.


Para quem quiser ler o artigo completo: http://www.bard.org/SectionEducate/WordsWords.html’




Janeiro de 2003
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