Neuras digitais

New Document – OK

Document 1

Nada mais desafiador do que um documento ainda sem nome. É a versão eletrônica do papel em branco sobre a mesa: digitaliza nosso pânico, pixeliza a angústia e às vezes desconfigura nosso metabolismo.

Sempre tive inveja dos "funcionários" pela sua capacidade de preencher folhas e folhas de papel em tempos olímpicos. Quando criança me fascinavam os escritórios com suas máquinas de escrever. Não eram nunca iguais, umas mais antigas, pretonas, outras mais modernas, verdes ou cinzas. E sua música então, andamento prestíssimo, um magnífico concerto dedicado à eficiência. Trocentas palavras por minuto. Mas essa conversa está ficando muito analógica, falando nisso é bom salvar esse Document 1.

Vamos ver, comando esse, deu um branco, deixa Document 1, depois eu penso num nome. Save…

Esse é mais um drama da nossa emergente era digital, dar nomes aos documentos. Dar nome é uma coisa superdifícil. A gente tem nove meses para escolher o nome do filho, uma semana para o do cachorro, um dia para o peixe e dois segundos para achar um nome adequado para o novo documento. Não é justo. Sem falar que tem que ser um nome inédito dentro do folder no qual está sendo salvo. Se houver um outro com o mesmo nome, imediatamente aparece aquela providente janelinha que nos alerta sob os perigos de termos o homônimo replaçado. Imagine se pudesse existir um só José no mundo. Por isso inventamos os sobrenomes, certo? E é exatamente isso que fazemos com os nossos documentos: José, José1, José1 revisado, José1 revisado copy, José1 revisado copy 1. Não conseguimos simplesmente encontrar um outro nome. Seria muito mais simples transformar o José em João. Mas, como uma pessoa, quando o documento perde a sua identidade original corre o risco desaparecer num diretório qualquer.

Na nossa área, muitos profissionais descobriram que além do seu talento para propaganda possuiam também uma extraordinária habilidade de batizar com nomes bizarros os seus arquivos e documentos. Alguns autênticos desabafos: De novo! Outros realmente modestos como: Cannes ou Clube de Criação. Têm os alarmistas: Que medo. Os otimistas: Agora sim copy 9. Os revoltados, os resignados e é claro os obcenos, que eu não vou explicitar porque que os palavrões só ficam à vontade na coluna do Lula Vieira.

Essa aptidão entretanto torna-se, do ponto de vista organizacional, muito pouco prática quando seu possuidor sai de férias e alguém tem que encontrar um documento na sua máquina. Então o bicho pega. O atentimento espuma, o mídia resmunga, a produção reclama.
Vamos lá: Clientes, lá estão todos, devidamente personalizados por icones, às vezes pouco lisonjeiros, parece que a busca afinal vai ser simples. Mas essa sensação desaparece ao se abrir o folder e deparar-se com um mar de micro enigmas, charadas digitais, toscos códigos pessoais. Encontrar alguma coisa nesse depósito de palavras sem sentido é como tentar achar o motor do seu carro num desmanche. Uma tarefa que exige habilidades paranormais, muito além das nossas medianas capacidades. Mas nada que esse quebrador de todos os galhos e conhecedor de todas as tecnologias não resolva: - Chamem o estagiário.

Clic, clic, clic. - Esse mouse está pegando, ele reclama, precisa de uma limpeza. Achei! Exclama prestativo.
- Muito obrigado, aproveita que você está com a mão na massa e dá uma limpadinha no mouse, por favor.

E assim, ao nosso modo, vamos conferindo personalidade ao universo digital.
Customizando desktops e emprestando ansiedade ao seu rítmo eletrônico.
Contaminando o cristalino espírito de silício com obsessões infantis. Tornando imperfeitamente humanas as nossas maravilhosas máquinas pensadoras.
Salvando documentos como salvam-se almas: batizando-os.

Outubro de 2000
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