Surfando na pororoca

Todo mundo já deve ter ouvido a conversa de que, em chinês, o ideograma correspondente a palavra crise é formado pela união de perigo e oportunidade. E ainda que essa informação venha, na maioria das vezes, de um autor mais interessado em vender o seu próprio peixe do que em reconhecer a expressividade da escrita oriental, o fato é que aos poucos vamos incorporando mais esse gadget semântico “made in china” ao desgastado significado que a palavra crise adquiriu no léxico ocidental.

Mas era de se esperar que, ao longo do tempo, o vocábulo em questão tenha perdido um pouco da sua precisão significativa - afinal é usado para identificar desde falência de casamento até a queda iminente do técnico de futebol. Assim, indistintamente, a palavrinha tem sido empregada para nomear a angústia existencial dos 40 anos, o desajuste fisiológico dos rins, o distúrbio psicológico de identidade do indivíduo, a superlotação dos presídios, a pane nos aeroportos, a falta de credibilidade do legislativo e as trapalhadas de uma república de bananas, só para citar algumas situações nas quais tem sido aplicada recentemente. Porém, mas não por acaso, é na área da economia que o significado da palavra crise vive em inflação permanente.

Usada exaustivamente para justificar qualquer oscilação econômica um pouco fora do comum, a idéia de crise provoca uma ansiedade no mercado que é sempre melhor aproveitada pelos especuladores profissionais - acostumados a fazer uma leitura à chinesa das circunstâncias. No nosso caso, como se não bastasse ter escolhido uma profissão em que a sobrevivência depende da habilidade de surfar na pororoca, de um tempo pra cá, temos que encarar também essas big waves globalizadas.

Dessa vez, no mercado brasileiro de propaganda, as primeiras marolas da turbulência global atingiram nossas praias mais ou menos no meio de outubro do ano passado. E as demisões da DM9DDB e da McCann Erickson, foram apenas a primeira bateria da temporada. De lá para cá, houve uma alternância jamais vista, tanto nos índices como no humor das notícias veiculadas na imprensa especializada. Numa semana se desenhavam cenários sombrios para um setor e na próxima resultados animadores para outro. Felizmente, nesse mar picado em que tudo podia acontecer, não aconteceu grande coisa.

Na esfera global, o episódio Michael Jackson mostrou que, na era do espetáculo, o Dow Jones está cada vez mais em baixa. A notícia da morte do ídolo varreu os sete mares como um tsunami midiático, dando um merecido caldo no tedioso obituário do capitalismo. De volta à tona a economia vai aos poucos reassumindo a sua usual postura de geradora de segurança e promotora da felicidade.

Localmente, a oferta de pepinos e abacaxis manteve-se em ligeira alta por conta da natural desorientação do momento. Fora isso, a crise deve ter funcionado apenas como a desculpa perfeita para o departamento financeiro cortar ainda mais as inscrições nos festivais, bem como para justificar aquelas decisões difíceis e as tradicionais sacanagens, sem as quais o mundo empresarial não vive.

Quanto a outra leitura do ideograma, a maioria talvez ainda não tenha se dado conta de que a grande oportunidade, afinal, foi a de não ter acreditato tanto na crise. Sorte de quem aproveitou.

Vamos remando.
Portfolio ...|... Revista ...|... Below ...|... Jornal ...|...Design...|... Contato ..|..Alltype..|