Nóis viemo aqui pra beber ou pra conversá?

No começo da década de setenta, uns dois ou três anos após a conquista definitiva da taça Jules Rimet, o Brasil vivia os momentos mais sombrios da ditadura ao mesmo tempo em que usufruia as delícias de um fugaz aquecimento econômico. Nesses idos, a classe média, esquizofrênica e alienada por natureza, convivia bem com a repressão política e a satisfação econômica. E, infantilizada, sentava-se à frente da TV para assistir à Selva de Pedra, novela de Janete Clair, que ia ao ar pontualmete às 8 da noite.

E aqueles que não se levantaram para o xixi, quase obrigatório no primeiro intervalo, provavelmente assistiram a um comercial da cerveja Antartica, que se passava numa praça típica de cidadezinha do interior. No filme, um político faz um discurso de inauguração de um monumento público, que está apropriadamente coberto por um pano. A multidão está visivelmente entediada com o seu palavrório sem fim, de repente a estátua, iterpretada por Adoniran Barbosa, se despe do pano e interroga solene: “Nóis viemo aqui pra bebê ou pra conversá?” O comercial foi criado na Almap pelo Arapuã e dirigido pelo Júlio Xavier.

Mudaram os tempos, a sociedade e, principalmente, as indústrias de cervejas, que hoje representam uma fatia bem mais barrigudinha na publicidade do que nos tempos dos generais. No entanto é hoje, nessa atmosfera aparentemente liberal, que o segmento de bebidas alcoólicas observa o animado bar da sua comunicação virar as cadeiras sobre as mesas, ameaçando acabar com a festa. E parece que o risco de fechamendo do boteco é uma ameça real . Tanto é que, nesse fim de semana, a Associação Brasileira de Agências de Propaganda, começa a manisfestar a sua opinião numa campanha criada pela F/Nazca, que será veiculada em TV, rádio e mídia impressa.

A indústria da propaganda, mais uma vez, se vê numa posição delicada e sem uma defesa consistente para encarar a enxurrada de argumentos que, bem intencionados ou não, possuem a procuração da moral e dos bons costumes que sempre será utilizada nas ações contra a publicidade. Será que é hora de chamar a saideira? Provavelmente ainda não, mas seria bom aproveitar para e pensar um pouco sobre o assunto.

Para começar, era meio que esperado que, após as restrições à publicidade de cigarro, a bola da vez seria a birita, por motivos que vão do oportunismo político à honesta preocupação sanitária. Além disso, o nível de exposição que as marcas de cerveja tiveram na mídia nos últimos anos, somado ao seu conteúdo exuberante, fatalmente tinham que atrair os olhares censores de todas as entidades que lidam seriamente com os problemas provenientes do consumo de bebidas alcoólicas. Seria ingênuo imaginar que a opinião pública não manifestasse o seu desconforto ao contrapor o número de alcoolizados mortos, feridos e dependentes, com os inebriantes comerciais de cerveja.

Que sirva de lição, em um país onde a legislação a respeito do consumo de bebidas alcoólicas é simplesmente ignorada, sempre será mais fácil censurar a propaganda , por fazer exatamente o seu trabalho de estimular o consumo, do que envolver-se diretamente com a ineficiência dos serviços públicos, incapazes de fiscalizar e punir as contravenções. Acontece que existe um descompasso entre a propaganda que se produz no Brasil e a sociedade que o Brasil tem produzido. O anunciante nunca deixará de assumir a sua responsabilidade na vida da comunidade pois sabe que o preço de uma ação equivocada fatalmente será pago pela marca que sempre assina embaixo. Entretanto, numa sociedade desigual, injusta e mal formada, que vive em metrópoles urbanamente degeneradas, do ponto de vista da justiça social, qualquer comercial pode ser rotulado de obceno e qualquer incentivo ao consumo soar de mau gosto.
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